Alguns de nós vamos ter sorte
Numa era de quase absoluta surdez de uns para com os outros, deixo-vos esta partilha como tentativa, que reconheço ambiciosa, de promover uma reflexão sobre a importância que têm, nas nossas vidas, o acaso e a empatia.
As circunstâncias mais difíceis despertam o melhor e o pior que há em cada um de nós. É um chavão, verdade que é. Mas seguir o caminho do melhor ou do pior não é um chavão, é uma escolha pessoal, ou uma reação.
O que de forma alguma depende de uma escolha ou de uma reação pessoal é a forma como o nosso corpo lida com a COVID-19. Aí, tudo se pode resumir a um acaso. Ainda ontem li sobre isso num artigo científico. Não desvalorizemos a influência do acaso nas nossas vidas. Tanto nelas se define pelo acaso. Sinto, e permitam-me o egocentrismo, ser hoje uma consequência do acaso, daí usar-me como exemplo.
Quando estive doente, tive sorte. O cancro mata milhares de pessoas todos os anos. Eu tive cancro três vezes e aqui estou com os dedos no teclado a escrever este texto. Sobrevivi. Tive sorte. «És jovem», diziam-me, «vai correr tudo bem», acrescentavam. Eu tentava acreditar que sim. Uns dias mais do que outros, dependendo de como me sentia. Olhava à minha volta e só via velhos. O cancro é uma doença do envelhecimento, uma doença de velhos, como se diz da COVID-19. «Só mata velhos», li um destes dias numa rede social. Nas enfermarias do IPO onde estive internado, os hóspedes eram quase todos velhos. Um dia, apareceu por lá um rapaz novo. Mais novo que eu. E foi andando por lá de uma forma tão tranquila e despreocupada que me perguntava a mim próprio se estaria doente. Um dia, vi-o na cama num emaranhado de tubos. No dia seguinte, quando acordei, tinha desparecido. Perguntei por ele. Ninguém sabia (eu percebia que me mentiam, no meu íntimo eu sabia a resposta). Teimoso, insisti. «Morreu», disse-me por fim uma desbocada auxiliar. «Olha, afinal também mata jovens», confirmei. Sorte, tive sorte.
Alguns anos depois, padeci de insuficiência renal, doença cada vez mais comum e que mata milhares de pessoas todos os anos. Quando estava na sala de hemodiálise, olhava à minha volta e os meus companheiros eram quase todos velhos. A insuficiência renal é uma doença do envelhecimento, uma doença de velhos, como se diz da COVID-19. «Só mata velhos», li um destes dias numa rede social. Mas na sala de hemodiálise havia também pessoas novas. Algumas mais novas que eu. Sobrevivi. E a sorte que tive foi tão grande que um dia recebi um rim. Mas para que eu tivesse sorte, alguém houve que não a teve. Alguém que teve muito azar e que morreu. Não me sinto culpado, não tive culpa, mas lamento, custa-me, dói-me. E aqui estou, espero eu a honrar essa morte, essa sorte. Sorte que tem durado até hoje. Sorte que tenho aproveitado para cuidar de mim, do meu corpo (o único território verdadeiramente meu) e daqueles que estão mais próximos de mim. Os outros, que não estão tão próximos, conheça-os ou não, procuro respeitar. Respeito pelo próximo, o princípio mais básico (e o mais difícil de cumprir) da nossa existência.
COVID-19:
alguns de nós vamos ter sorte. Outros não. Muitos já não tiveram e partiram. Não
é possível ficar indiferente a tantas mortes, a tanto sofrimento, ao
esgotamento de força, de ânimo, de recursos. Não nos enganemos, é notória a crise
de empatia que vivemos, a prática do foco no próprio umbigo e que se lixe o
outro. A empatia é a base das relações humanas. Se não a cultivarmos, tornamo-nos
selvagens. Assusta-me a ideia de que é numa selva que o meu filho, agora com 15
anos, se aventura todos os dias e que é essa mesma selva, com tendência para
ficar ainda mais perigosa, que a minha filha, seis meses feitos há dias, um dia
terá de enfrentar.
18 de Janeiro de 2022
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