Somos instantes
Como dançarino, tenho dois pés esquerdos. Já tentei aprender alguns passinhos, mas sinto sempre que o meu tronco não joga com as pernas e que os pés e os braços não harmonizam com coisa nenhuma. Uma encruzilhada! Tenho pena. E confesso a minha inveja pelas bailarinas e bailarinos que, leves e ágeis, umas vezes hirtos, outras ondulados, a solo, em duo ou em grupo, flutuam e viram e reviram com vaidade nas pistas, palcos ou ruas, decifrando música com o corpo, esquecendo que este de matéria é feito.
Há magia e mistério na forma como cada pessoa expressa, dançando, aquilo que ouve. Também eu ambiciono descobrir a minha expressão dançante e o meu sentido rítmico — os quais, a existirem, estarão bem escondidos. Mas talvez já vá sendo altura de avançar nesta exploração. Porventura, em paralelo com a concretização de outro projeto que também me inspira auto libertação: aprender a andar de mota. E visto que as duas atividades requerem coordenação e equilíbrio, creio que uma sustentará os ganhos da outra. Tenho vontade e um plano, meio caminho andado.
“Hip
Hop – a dança urbana”, eis o título que Clara apresentou à classe na segunda
parte da aula dedicada a apresentações orais. Clara começou por enunciar
diversos tipos de dança, ilustrando-os com movimentos específicos ao ritmo de
música adequada. Gostei particularmente do Merengue: “É só fazer de conta que
estamos a pisar ovos.” Pareceu-me fácil. Logo que cheguei a casa, experimentei.
Não correu muito bem, quiçá por não ter espalhado ovos no chão.
Clara orientou-nos ainda numa curta coreografia baseada num movimento de braço típico do hip hop antes de explicar que este género de dança urbana deriva do breakdance, nascido e desenvolvido no Bronx, em Nova Iorque, pelas comunidades negra e latina, com o objetivo de pacificar as guerras de gangues. Em vez de se matarem uns aos outros, dançavam, simulando socos, facadas e disparos para provocar os adversários. O hip hop é, pois, um movimento de paz e não de violência e de crime, como erradamente tem sido apresentado como uma das justificações para o aumento da violência juvenil em Portugal.
“Venho
falar-vos sobre doces tradicionais portugueses e explicar como se confeciona um
deles. Alguém arrisca adivinhar qual é?”, indagou Maria, já próximo da hora de
almoço.
—
Arroz-doce! —, respondi, já a salivar, esperançoso numa degustação pós
formação.
—
Como é que acertaste?
—
É o meu preferido —, confessei, vasculhando com os olhos o saco de Maria,
parecendo-me ver um tupperware (ai, que cruel é a tendência humana para ver
aquilo que deseja que seja verdade).
A
origem do arroz-doce remonta a 6000 a.C. e, embora seja um doce simples de
confecionar, há alguns erros a evitar: “Nunca se deve adicionar qualquer
ingrediente frio ao arroz”, alertou Maria, finalizando a explicação da receita
com um entusiasmado “experimentem!”. O arroz-doce nunca apareceu...
Quase
sem pausa, Mónica serviu-nos, figuradamente, um Negroni num invólucro maleável.
Para quem não sabe, o Negroni é um cocktail feito com gin, vermute rosso e
Campari. “O gosto é forte, ou se gosta ou se odeia”, avançou. Fiquei curioso,
assim como com o arroz-doce da Maria…
E,
já agora, conhece a origem da palavra cocktail? Há várias teorias. Mónica
revelou-nos esta: o cocktail surgiu nos Estados Unidos, em 1779, durante a
Guerra da Independência, quando um irlandês chamado Flanagan começou a servir
bebidas misturadas (inicialmente apelidadas de bracer) na sua estalagem em Georgetown,
Virgínia.
Flanagan não se dava bem com o vizinho, um inglês criador de galos, que reclamava do barulho na taberna da estalagem até altas horas da madrugada. Por seu turno, Flanagan e a filha, Betsy, ameaçavam torcer o pescoço aos galos madrugadores que acordavam os hóspedes. Uma noite, no final de um faustoso jantar, os hospedeiros brindaram os seus clientes com bebidas misturadas em copos decorados com os penachos de mil cores que haviam arrancado aos galos. Todos felicitaram os taberneiros pela originalidade e pediram cocktails (rabos de galo) durante o resto da noite. E foi assim que o bracer passou a cocktail. Espero sinceramente que os galos não os tenham deixado dormir um minuto.
Foi
de barriga vazia e de garganta seca que Bárbara nos explicou que as entidades
bancárias não estão a obter tantos lucros como parece. Numa altura em que
diversos bancos anunciaram lucros recorde, confesso que fiquei um pouco
intrigado com a revelação, mas com o avançar da mini formação em rentabilidade,
fiquei a perceber melhor o “lado” dos bancos. Nomeadamente, quais os mecanismos
ativados quando alguém deixa de pagar um empréstimo e as estratégias para
obterem rentabilidade. Quando Bárbara terminou, recriminei-me por não ter
investido em dólares enquanto foi tempo.
Depois
da curta escala no café para repor os níveis de energia, Odete falou-nos sobre
os “conceitos de segurança aeroportuária” e os atos de interferência ilícita,
nome técnico de tudo aquilo que, de alguma forma, pode comprometer a segurança
da aviação civil. Odete ressalvou, por exemplo, a importância da identificação
por parte de quem trabalha num aeroporto, a quem é atribuído um cartão pessoal
e intransmissível. Por vezes, explicou, os auditores de segurança engendram
estratagemas para procurar falhas no sistema. “Houve um auditor da Autoridade
Nacional da Aviação Civil que circulou durante cinco dias no aeroporto com a
fotografia de um cão no cartão de identificação sem que ninguém o tivesse
interpelado”, exemplificou. Os telemóveis puseram mesmo toda a gente de cabeça
virada para baixo e já ninguém repara realmente em alguém, não é?
Teresa
não pensa assim, como provou a sua formação sobre “Imagem pessoal”, que assenta
no poder da imagem como forma de gerar associações na mente das pessoas,
associações essas que estabelecem a imagem de marca de cada um de nós. “Como
nos vestimos, como falamos, como nos movimentamos, tudo isso faz parte do
marketing pessoal.” Para o desenvolver, devemos criar uma história pessoal,
única, autêntica. “Invista em si e chegará mais longe”, finalizou, abrindo
caminho, como num argumento bem gizado, para a entrada em cena de Alexandra e a
sua formação sobre “Fibras naturais em contexto têxtil”: algodão, lã, seda,
linho e caxemira.
Ao
contrário das formações de Maria (arroz-doce) e Mónica (Negroni), tivemos a
oportunidade de experimentar peças confecionadas com cada uma das fibras
referidas. Gostei muito da caxemira, a fibra natural mais cara do mundo, muito
delicada, suave ao toque, confortável e quente, que provém das cabras de
Caxemira (altos planaltos dos Himalaias na China e Mongólia). Escovando-as
desde a virilha, onde se encontram as fibras mais finas, os chamados sub-pêlos,
obtém-se matéria-prima para a produção da nobre lã. Uma cabra de Caxemira
fornece apenas 50 a 150 gramas de lã por ano.
Pensando em investir em mim, espreitei numa loja online uma camisola de gola alta ao meu gosto, azulinha, linda, por 238 €. “Volto a tentar nos saldos”, pensei, notando noutro site que algumas marcas de roupa e alguns criadores de moda deixaram de utilizar fibras de origem animal nas suas criações devido ao sofrimento causado aos animais. Ora, também há boas e bonitas camisolas de algodão. E se tiver frio, visto umas por cima das outras.
“Que
horas são?”, perguntei-me, enquanto verificava no meu relógio de pulso que o
tempo para as apresentações se aproximava do fim. “O ser humano sempre
necessitou de ter a noção do tempo para entender melhor tudo o que o rodeava”,
introduziu Carlos, relojoeiro profissional. O relógio de sol, que terá surgido
por volta de 1500 a.C., foi o primeiro instrumento a permitir dividir o dia em
partes menores. “Conhecem a âncora em frente ao Mosteiro dos Jerónimos? É um
relógio de sol!”, esclarece Carlos. Desconhecia.
Na
história dos relógios, aos de sol, seguiram-se os de água (Clepsidra, 1400
a.C.) e os de areia (ampulheta, 600 a.C.). Num gigantesco salto no tempo,
avançamos para início do século XVI, quando Peter Henlein criou o Ovo de
Nuremberga, um relógio de bolso, transformando para sempre a indústria
relojoeira. Desde então, passámos a levar instrumentos de medição de tempo
connosco para toda a parte. Instintivamente, voltei a olhar para o meu relógio,
oferecido pelos meus pais há 23 anos, quando terminei a licenciatura, e
concentrei-me no ponteiro dos segundos, refletindo no maravilhoso instante em
que, de lágrimas nos olhos, o coloquei no pulso, e os abracei. Somos instantes.
Publicado na edição online do jornal PÚBLICO a 17 de agosto de 2022
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