O mundo dividido entre os que escutam e os que não se calam
Há lá coisa mais prazerosa do que chegar à
praia de manhã bem cedo, tirar os chinelos e sentir a areia fria nos pés. A
descrição bastou para que o sentisse, não foi? Desfrute enquanto eu avanço em
direção ao mar. A maré está baixa e há uma larga cinta de areia molhada
paralela ao mar. Sinto a areia um pouco mais fria e arrepio-me, mas continuo a
caminhar até a água me cobrir os tornozelos.
Quando cheguei à pacata praia algarvia onde
me encontro, reparei na informação sobre a temperatura da água no dia anterior:
23ºC às 10 da manhã, 24 ao meio-dia e 25 às 16 horas. Uma maravilha. Desde os
verões da adolescência que não passava tanto tempo a banhos. A esta hora
(7h30), a água está um pouco mais fria. Sinto-o quando a espuma das ondas
maiores me acaricia os joelhos. Talassoterapia de borla ao som das ondas a
beijarem a areia e das gaivotas a gritarem de ciúme. Um banho de mar é
relaxante, estimula e revigora corpo e mente.
Observo o mar e o céu. Uma gaivota
aproxima-se pela minha direita, uns cinco metros acima do mar. Vem aos gritos.
Parece uma criança a chorar. Fascinam-me as vozes da gaivota. Desde miúdo que
adoro gaivotas. Acho que a adoração começou com a música Somos livres da
Ermelinda Duarte, que celebra a liberdade e o 25 de abril: “Uma gaivota, voava,
voava, asas de vento, coração de mar / Como ela, somos livres, somos livres de
voar".
Voar. Gostava de ser gaivota e voar sobre o
mar. Faltam-me as asas, abraço o conceito, ensinado pelos meus pais desde tenra
idade: liberdade, a maior das riquezas.
Outra gaivota aproxima-se pela minha
esquerda. Vem a ladrar. É mesmo o pássaro das mil vozes. Só lhes falta falar
como nós. (Fá-lo-ão?) As duas gaivotas cruzam-se a alta velocidade mesmo à
minha frente. Uma delas mantém a rota, a outra retorna e afasta-se em direção
ao mar. Voam em paralelo, à distância, subindo e descendo em uníssono. De
repente, aproximam-se, quase se tocam, mas travam a tempo, virando a par em
direção à praia. Sobrevoam-me. Rodo a cabeça a tempo de as ver regressar.
Já não sinto os pés. Sigo-as para o mar,
observando-as à distância. Uma por cima, outra por baixo. Rodam, desenhando um
círculo perfeito, uma passa para cima, a outra para baixo, repetem o gesto, uma
e outra vez, afastam-se, mantém a distância, sempre em paralelo. Pouco depois,
qual coreografia combinada, voltam a juntar-se. Duas almas gémeas a brincar no
céu ao longo da praia. Natureza em estado puro. Persigo-as como posso, olhos no
céu, até que a falta de fôlego me faz tombar os joelhos com água pela cintura.
Não está fria. Deixo cair o tronco, mergulho a cabeça, deixo-me levar pela onda
que passa, qual concha rebolando pela areia. Talassoterapia de borla.
Saio da água e estendo-me na areia seca.
Está fresca, mas parece morna em contraste com o meu corpo molhado. Respiro
fundo e relaxo. O voo foi cansativo. Escuto. Já se ouvem algumas crianças. É a
hora das famílias e dos caminhantes. Escuto as famílias, adivinho os
caminhantes. Os caminhantes não se ouvem. Vêm sozinhos e, habitualmente,
caminham em silêncio. Escuto, tentando aperfeiçoar a técnica.
Escutar é uma tarefa difícil, exige
dedicação, treino, repetição. Quantos de nós conseguimos calar o ego e escutar
com o coração, resistindo a expor as nossas expetativas e ideias? É fácil dizer
que se é um bom ouvinte. Isso, qualquer um que oiça bem e que conheça o ditado
“quando um burro fala, o outro baixa as orelhas” o pode ser. Difícil é escutar,
absorver os sons e as palavras que são ditas, captar o seu sentido, ter a
humildade de ver as coisas e o mundo da forma como o outro o vê — é certo e
sabido que vemos as coisas e o mundo como nós somos e que é difícil agir de
outra forma —, respeitando a forma como nos expõe o seu mundo interno, escutar
sem julgar ou encaixotar em padrões.
Recentemente, não há mais de dois meses,
cruzei-me com um amigo que não conhecia — é precisamente isso que leu, alguém
que conheci já era meu amigo antes desse encontro. Este acontecimento veio
desmontar a minha convicção de que não podemos ser amigos de alguém que não
conhecemos. Podemos, sim. Este acontecimento provou-o.
Conversei com o meu novo (velho) amigo, trocámos pontos de vista, encontrámos coisas em comum, confiámos, seguimos juntos, como fazem os amigos verdadeiros. “Meu amigo”, disse-me o Jorge a dada altura, “nós já caminhávamos juntos, só ainda não nos tínhamos cruzado”. Há dias, pedi-lhe ajuda. Escutou-me com atenção e sem me interromper, senti-o presente, inteiro, escutando com os ouvidos, com os olhos, com o corpo, com o coração, de boca fechada. É o exemplo de um bom ouvinte, alguém que escuta. A minha mensagem passou, ele ajudou-me. Comunicação bem-sucedida: a solução para muitos dos males do mundo.
Estendido na areia, num longo parêntese
preenchido pelo som das ondas, das gaivotas, do riso das crianças, concluo que
o mundo está dividido entre os que escutam e os que não se calam. Talvez seja
por isso que o verdadeiro sentido de muitas palavras fica por aí a pairar no
ar, perdido entre a boca de quem fala e o ouvido de quem não escuta.
publicado na edição online do jornal PÚBLICO a 29 de julho de 2022
Comentários
Enviar um comentário